Se tem uma coisa que me tira do sério é que meus discursos de briga sejam esfacelados. Eu me dedico, ensaio horas, e o outro lado da história simplesmente muda o roteiro, interfere sem nenhum pudor ou pedido de permissão. Francamente!
Brigar é sempre ruim, não adianta. Muitos dizem que pode ajudar a apimentar a relação, melhorar a convivência familiar e fazer uma amizade morna reaquecer até chegar ao primeiro estado. Tudo bem, lindo. Mas toda essa melhora é provocada pelo pós-briga, não pela briga. As coisas entram no eixo a partir do consentimento, do acordo, do toque de abdicação cedido por ambos os lados da desordem. A briga em si é um inferno, todas são. Falar barbaridades que não pensamos de verdade, ouvir coisas que nem sob penitência gostaríamos de saber, cultivar sentimentos horríveis pelas pessoas que mais amamos e que mais se doam para nós. Nada disso é gostoso, mas é inevitável em alguns momentos.
Porém, feita a desgraça, eu quero ter o direito de saborear até o fim. Se os envolvidos não souberam contornar a crise sem partir para o salseiro e a paz vai mesmo ser quebrada, então que deem a eles pelo menos o direito de extravasar, o quanto e como quiserem. Falando particularmente, quando alguém faz algo que me magoa, eu crio todo um teatro mental em torno daquilo antes mesmo de falar. Invento cenas, faço diferentes performances para o discurso, defino qual ficou melhor, imagino personagens que às vezes nem existem, e me ponho num cenário, junto à “vítima” do meu falatório. E então começo a arrazoar toda a raiva e chateação na minha cabeça. No meu fantástico mundo das brigas, figuro também as respostas, e se o outro retruca o que digo, eu rapidamente contra-argumento com algo que vai fazê-lo se embasbacar, pois nunca vira nada tão convincente.
Então é chegada a hora tão esperada, hora de botar em prática meu plano infalível de instituir o inferninho na relação. Vou armada com toda grosseria que Deus me deu, disfarçada – ou desmascarada – num vestido de matar e salto 15; afinal, não estou aqui para brincadeira, e o outro precisa saber disso. Tudo preparado, já estão saindo abelhas-rainha da minha boca, quando tento soltar a primeira ofensa. Sou interrompida. A pessoa, vítima, vilã ou seja lá que papel social ocupe, cruza minha fala com um simples e irrefutável: “Me perdoa?”. Pronto, acabou a noite ali. Me perdoa? Cacete, e o meu discurso? Não era a hora de você tentar amenizar a bola fora jogando culpas anteriores na minha cara? Você não deveria ser irrelutante ao negar seu erro ou, no mínimo, justificá-lo com meus deslizes ainda maiores? Você fez tudo errado. Devia ter me deixado falar, te xingar. Que terminasse tudo depois, que eu me odiasse por isso no dia seguinte. Mas era meu plano, eu tinha que falar! Não percebe que eu simplesmente não consigo mais te odiar vendo esses olhos marejados de verdade?
Isso me deixa confusa: perdoar e deixar para trás, frouxo, esquecido, o meu tão bem preparado discurso de briga, ou usar a interrupção indesejada para começar outra briga ainda maior? A segunda parece mais instigante, mas e o discurso? Agora, eu não teria tempo suficiente para preparar com tamanha cautela e perfeição todo o ódio lexical que o outro merecia receber. Seriam palavras jogadas, sem sentido, não feririam como eu quero.
Acho que tenho que aceitar o pedido de desculpas. Esquecer a mágoa, começar de novo. Mas será que vai ser sempre assim? Ninguém nunca vai me deixar espernear de raiva e falar coisas horríveis nas quais eu não acredito? Eu sempre vou ser calada com um minúsculo gesto de ternura? Sinceramente, não sei, mas tomara que sim. Melhor que isso me mate de raiva por um dia, do que mate meus laços de amor por toda uma vida.
Por que as pessoas não seguem o roteiro e nos deixam extravasar a raiva do momento, elas vem e mudam tudo que haviamos planejado. Já tive situações como essa e é frustrante. Parabéns Raira, seu texto esta incrível, adorei ler. Beijos
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